2025-11-02
Os meus mortos
Os meus mortos vivem comigo. Às vezes sentam-se à mesa, em silêncio, a escutar o rumor dos dias que continuam sem eles. Trazem-me memórias como quem oferece flores colhidas no tempo. Não pedem nada, apenas presença. Falam através das sombras, dos cheiros antigos, das canções que insisto em repetir. Aprendi a não temer o que não volta, apenas a acolher o que permanece. Porque os meus mortos não partiram: transformaram-se em voz, em gesto, em brisa. E sei que a eternidade possível passa por um pequeno exercício que, cada um de nós, pode fazer à sua maneira: lembrando.
2025-11-01
Dia de Todos os Santos
Há uma serenidade discreta no dia de hoje. As ruas parecem falar mais baixo, como se soubessem que o calendário pede respeito e memória. O Dia de Todos os Santos é uma pausa silenciosa — um convite a pensar nos que vieram antes, nos que vivem em nós através de gestos, cheiros, lembranças. Não é luto, é gratidão. É um sopro de eternidade no meio da pressa. Talvez a santidade esteja nisto mesmo: nas pequenas bondades que deixamos pelo caminho, nas presenças invisíveis que continuam a iluminar os nossos dias. Hoje, o tempo dobra-se em reverência.
2025-10-31
🎃 Três Vozes para a Noite de Halloween
Há noites que não pertencem inteiramente ao calendário. O Halloween é uma delas — uma dobra luminosa entre o medo e o riso, onde as sombras se tornam matéria de poesia e o escuro pede tradução.
Estas três vozes nasceram dessa travessia: a leve, a inquieta e a que fica entre as duas — a metade da noite.
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🌕 1. Entre abóboras e luar
para quem ainda acredita que o escuro também sabe sorrir
Há um riso doce espalhado no ar — uma gargalhada de criança misturada com o cheiro de folhas molhadas. O vento brinca nos cabelos e as luzes piscam como quem piscasse o olho à noite. É Halloween, mas não há medo. Há um certo encantamento em fingir ser outro por algumas horas, em esconder o rosto e, ao mesmo tempo, revelar o que sempre quisemos ser.
As casas brilham, os degraus ganham passos apressados e, entre “doces ou travessuras”, há um fio de ternura que une todos — quem dá, quem recebe, quem observa da janela com uma caneca quente nas mãos.
Porque talvez o Halloween não seja sobre o susto, mas sobre o riso que nasce do susto. Sobre a coragem de brincar com o escuro. De acender uma pequena vela dentro da abóbora e deixá-la brilhar, mesmo que só por esta noite.
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🌑 2. O que permanece depois do riso
para quem sabe que os fantasmas também moram por dentro
Depois que os risos cessam, depois que as velas se apagam, fica um silêncio estranho. Um silêncio cheio. As máscaras, pousadas sobre a mesa, parecem observar-nos de volta. Há um resquício de algo — um frio que não vem do vento.
Talvez seja isso que o Halloween tenta lembrar: que os fantasmas não estão fora, estão dentro. Nas memórias que evitamos, nos nomes que não dizemos, nos gestos que ficaram por fazer.
Entre os doces esquecidos e o eco distante de passos, há algo que persiste. Algo que olha connosco para o espelho e pergunta, baixinho:
“E tu, de que é que te disfarças quando o mundo adormece?”
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🕯️ 3. A metade da noite
para quem atravessa o escuro e regressa inteiro
Há noites que não são escuras nem claras — apenas suspensas. O Halloween é uma delas. Uma dobra no tempo onde tudo parece respirar mais devagar: o som dos passos, o lume das velas, até o próprio pensamento.
Talvez por isso esta noite tenha um nome. Porque é preciso dar nome ao que não sabemos explicar.
Entre o riso e o medo há uma fronteira ténue — e é ali que gosto de ficar. No instante em que a criança finge ser monstro e o adulto finge não acreditar. Nesse espaço onde o faz-de-conta se transforma em espelho, e o escuro se revela cúmplice.
Penso nas máscaras — todas elas. As de papel, as de tinta, as que usamos para parecer fortes. Penso que talvez o Halloween seja apenas uma desculpa antiga para as retirarmos, uma de cada vez, e ver o que sobra.
Porque há sempre algo que sobra. Um olhar, um arrepio, uma lembrança que se senta ao nosso lado.
E quando a meia-noite passa e o silêncio volta a encher a casa, não é o medo que fica — é o brilho. Um brilho estranho, quase terno, de quem atravessou o escuro e regressou inteiro.
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💭 Notas do blogue:
Há festas que são espelhos e há espelhos que são portais. O Halloween talvez seja ambos. Uma noite para rir do medo e ouvir o que ele sussurra quando o riso cessa.
2025-10-23
2025-09-05
Glória
Vivia em Portugal sob os frágeis céus da esperança: um homem ucraniano refugiado da guerra. Chegou ao nosso país buscando paz, mas na curva abrupta da Calçada da Glória, um falhanço mecânico da máquina centenária, cancelou vidas: ele, entre as dezasseis vítimas, foi uma delas. Agora, resta o silêncio do luto e o gosto amargo de saber que, mesmo fugindo do horror, ele encontrou aqui a sua última despedida.
2025-08-20
Segredos
O horizonte sussurra segredos que o vento espalha antes que o sol se atreva a pôr-se. A luz treme nos cantos da manhã, como se tivesse medo de ir embora. O silêncio estica-se, habitado pelos ecos do que fomos antes de perder o medo de sentir. Sentimo-nos frágeis, mas a fragilidade tem o peso da verdade — pesa como saudade e voa como um suspiro. Há beleza na hesitação, na linha tênue entre o que desejamos e o que ousamos exprimir. E nessa tênue fronteira, encontramos o que resta de nós: uma alma pronta para ir além.
2025-08-16
Paranóia
A paranóia é quando a cadeira te observa de volta.
E há um zumbido, sempre um zumbido, que começa pequeno, como se o silêncio estivesse engasgado, mas instala-se logo atrás dos olhos.
É o frigorífico que pisca; o vizinho que tosse duas vezes às 3h14; são os passos que sabem o nosso nome, mesmo quando ninguém nos chamou.
É o mundo que te olha de lado, a rua que te olha de lado, o poste que finge que não viu.
E atravessas com a sensação de que alguém tomou nota da forma como pisas no chão, ou que há uma câmera de filmar no espelho.
Segues com os olhos nas costas, os ouvidos nas paredes e a alma na ponta dos dedos, tateando o invisível.
Lembras-te de quando era só medo. Agora é mais — é o sistema.
A paranóia é uma fé torta.
2025-06-25
Céu de Verão
O céu de verão é um bicho inquieto. Acorda cedo, já azul e espalhado, como se tivesse pressa de existir. Às vezes vem limpo, outras riscado por fiapos de nuvens que não sabem se ficam ou vão. O sol, senhor absoluto, escorre dourado nas esquinas, nas peles, nos silêncios abafados da tarde. Tem dias em que o céu inventa tempestades do nada, só para lembrar que manda. E quando escurece, não cessa — vira palco de estrelas que piscam sem ordem, sem vergonha. O céu de verão não pede licença. Ele chega, ocupa, enquanto nos esforcamos para caber dentro dele. Não é apenas um telhado azul, é um portal para a alma, um lembrete de que a magia ainda existe, se soubermos onde procurar.
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