2025-12-12

A Grande Batalha Aritmética de 11 de Dezembro

Num país onde a matemática é claramente uma ciência inexata, assistimos ontem a mais um episódio da série "Quem Conta Melhor".

Do lado esquerdo do ringue, as centrais sindicais bradavam orgulhosas: "3 milhões de grevistas! A maior greve de sempre! O país parou!" Do lado direito, o Governo, com ar professoral, ajustava os óculos: "Adesão inexpressiva. Entre 0% e 10% no privado. Nada a assinalar."

Claro, ambos estavam a contar as mesmas pessoas, no mesmo país, no mesmo dia. Mas aparentemente usaram calculadoras de universos paralelos.

A CGTP contou até três milhões (provavelmente incluindo quem estava de férias, baixa médica e até alguns reformados nostálgicos). O Governo, sempre meticuloso, só contou quem enviou email formal com assunto "Hoje estou em greve, com os melhores cumprimentos".

No meio desta confusão numerológica, o cidadão comum tentava apenas chegar ao trabalho — ou não — enquanto testemunhava mais uma masterclass portuguesa de como transformar números em ideologia e estatísticas em arma de arremesso político.

Afinal, em Portugal não fazemos greves. Fazemos eventos de interpretação criativa de dados. É muito mais divertido, embora infinitamente menos esclarecedor.

Moral da história: Ninguém sabe ao certo quantos aderiram à greve. Mas todos têm a certeza absoluta de que têm razão. E isso, meus caros, é tão português quanto o bacalhau e a saudade.

2025-12-11

Greve Geral


Ah, caros concidadãos. Que época magnífica para se estar vivo, empregado e ligeiramente desesperado em Portugal. O ar está carregado de promessa. Não a promessa de um futuro melhor, mas aquela promessa pesada e húmida que precede uma trovoada — neste caso, uma greve geral. E no centro desta tempestade perfeita, ergue-se, como um monumento à sagacidade burocrática, o nosso flamante Novo Código do Trabalho.

Os arautos do progresso, aqueles que usam fatos de linho em reuniões com ar condicionado, batizaram-no de "Moderno". "Flexível". "Competitivo". Palavras tão reluzentes e ocas como os prédios de vidro onde são proferidas. A modernidade, claro, não está em garantir que um trabalhador consiga pagar uma renda e comer algo mais sofisticado que atum de lata no mesmo mês. Não, senhor. A modernidade está na sublime arte de transformar direitos adquiridos com suor e protesto em meras "sugestões" negociáveis.

Olhe para a joia da coroa: o tal "banco de horas anualizado". Uma invenção tão brilhante que só podia ter sido concebida por alguém cuja maior fadiga laboral é carregar o cartão de crédito corporativo. A ideia é simples e bela na sua perversidade: as horas extra não são para pagar, são para "gerir". Trabalha 60 horas numa semana a apagar fogos? Excelente! Na semana seguinte, folga uma tarde. Chama-se "equilíbrio". Eu chamo-lhe a versão laboral de fiado. É a uberização do emprego estável: você é o seu próprio mini-empresário, sempre à beira da falência de energia física.

E depois temos a facilitação dos despedimentos. Outro triunfo da linguística orwelliana. "Facilitação" soa tão bem, tão fluida. Como "facilitar o fluxo do trânsito" ou "facilitar a digestão". O que se está a facilitar, meus amigos, é o passe do patrão para lhe mostrar a porta com um custo que deixou de ser proibitivo para se tornar um mero inconveniente contabilístico. A mensagem subliminar é clara: "Sorria, seja produtivo e não aborreça, senão facilitamos a sua transição para o estatuto de ex-colaborador."

E, claro, a desregulamentação dos horários de trabalho. Adeus, tetos rígidos de horas por dia! Olá, "adaptabilidade"! Porque o que o trabalhador português, já especialista em fazer milagres com um salário mínimo, realmente queria era a nobre incerteza de não saber se hoje sai às 18h ou à meia-noite. É uma injeção de adrenalina na rotina! Quem precisa de planear uma vida familiar, de ir ao ginásio, ou simplesmente de desligar, quando se pode viver na emocionante expectativa de um email do chefe às 21h?

Perante este festival de boa-vontade patronal, a resposta sindical era inevitável: uma Greve Geral. Aquela tradição portuguesa tão nossa, tão bela no seu caos coreografado. Os mesmos profetas do apocalipse económico que nos venderam o Código como a salvação, agora torcem as mãos e lamentam a "intransigência" e o "atraso". É de uma ironia deliciosa. Esperavam o quê? Que oferecessemos rosas e bolos a esta reforma que cheira a velha receita de espremer até à última gota? A greve é o soluço seco de um país que já engoliu muitos sapos e se apercebeu de que este vem com um fato de três peças e uma calculadora.

No fim, o espetáculo é perfeito. De um lado, o Governo e os seus apóstolos, a falar de "atrair investimento" com a doçura salivar de quem vende um país-usado. Do outro, os sindicatos, a berrar "Atentado social!" com a fúria ritual de quem sabe que está sempre a perder terreno, mas não pode admiti-lo. E no meio, nós, a plebe assalariada, a tentar decifrar se esta "flexibilidade" toda é a corda que nos vai safar do poço ou a que vão usar para nos amarrar melhor.

O futuro promete. Promete cansaço. Promete instabilidade. Promete aquele brilho especial no olho do patrão quando se lembrar que, tecnicamente, você agora pertence à empresa 24 horas por dia, sete dias por semana. Se tudo correr como planeado, seremos a força de trabalho mais "moderna" e "flexível" da Europa.

Completamente exaustos, mas moderníssimos.

E pronto. Afinal, como dizia o outro, o trabalho liberta. Agora, literalmente, até das suas próprias horas de descanso.

2025-12-10

A Eurovisão da moral relativista


Oh, meus amantes do kitsch e do conflito geopolítico disfarçado de festival da canção! Que alegria ácida nos traz esta edição da Eurovisão, que promete ser menos um concurso musical e mais uma simulação avançada da ONU — se a ONU tivesse key changes, pirotecnia barata e coreografias que parecem ter sido ensaiadas num parque de estacionamento do Ikea.

O cenário está montado: estamos todos numa arena brilhante, prontos para celebrar a união através da música, o poder redentor de uma power ballad em falsete, e a inquebrantável tradição europeia de fingir que gostamos de ethno-trance da Moldávia. Mas este ano, a cortina de glitter esconde uma tensão mais densa que o sotaque dos comentadores italianos. Porque, caros amigos, a Eurovisão decidiu, com a coragem moral de uma lebre em câmara lenta, que há boicotes que são trendy e há boicotes que são… inconvenientes.

De um lado, temos as várias delegações que se retiraram ou ameaçaram fazê-lo. Países que decidiram que a sua consciência não lhes permite brilhar ao lado de um participante que representa um Estado acusado de violações dos direitos humanos. É uma posição nobre, sem dúvida. Faz lembrar aqueles amigos que se afastam de uma festa porque discordam do anfitrião, mas só depois de garantirem que aparecem nas fotos iniciais para o Instagram. A sua ausência será sentida e a contribuição para o orçamento também.

E do outro lado, no centro do furacão, Israel mantém-se. Com direito a spotlight, a votações do público, e provavelmente a uma act cheia de simbolismo ambíguo sobre "luz após a escuridão" ou "esperança além do medo". A União Europeia de Radiodifusão (UER), essa entidade cuja neutralidade é tão flexível quanto as regras do que constitui uma "canção", coça a cabeça, consulta manuais de relações públicas de 1992, e anuncia: "Cumpre os critérios!" Os critérios, claro, são uma coisa misteriosa e movediça, como a definição de "bom gosto" numa atuação da Sérvia. Incluem não ter letras explicitamente políticas (a menos que sejam suficientemente vagas), não incitar ao ódio (a menos que seja feito com uma melodia cativante), e não violar a "natureza apolítica do evento" — uma piada tão grande que merecia a sua própria novelty act.

E assim se constrói o paradigma Eurovisivo 2025: podemos expulsar a Rússia com o fervor de um key change dramático (e com toda a razão, diga-se), mas perante Israel, a resposta oficial é um shrug sonoro acompanhado de um "É complicado, queridos." É a política do "Um Apartheid Não Se Faz Em Um Dia" aplicada à indústria do entretenimento. A mensagem é cristalina: há conflitos que mancham a aura de paz e amor do evento, e há conflitos que… bem, que podem pelo menos gerar engagement nas redes sociais e umas quantas manchetes dramáticas. Ratings, meus caros, ratings!

Então preparemo-nos para a noite final. Enquanto os fãs acenam bandeiras e choram com as baladas, e os jurados trocam votos de forma suspeitamente geopolítica, a realidade lá fora — de morte, destruição e sofrimento inimaginável — será temporariamente suspensa. Será substituída por três minutos de pop otimista, uma coreografia sincronizada e a host sorridente a dizer, em inglês perfeito: "Que a música una-nos a todos!"

A ironia é tão espessa que se poderia cortá-la com uma faca de plástico da merchandising oficial. A Eurovisão, esse farol de kitsch e convivência, revela-se, uma vez mais, o espelho mais honesto do nosso continente: incapaz de tomar uma posição clara quando o custo é alto, especialista em criar palcos onde a dissonância cognitiva soa como uma melodia harmoniosa.

Portanto, sentem-se, peguem nas bandeirinhas e nas lágrimas fáceis. Vamos aplaudir a coragem da UER em manter o status quo. Vamos celebrar a união através da música. Mas não se esqueçam: nesta edição, o background mais impressionante não será a LED wall. Será o silêncio ensurdecedor sobre o que realmente está em jogo.

E o vencedor é… a hipocrisia, com 12 pontos de todos os jurados.


2025-12-09

Adeus, princesa

RIP Clara Pinto Correia

Intervenção

 



"A extrema direita que eu assumo é ter na mão direita um punho que carrega uma caneta

Voz armada com bala de chumbo, tiro seguido de fumo, sou mulher e sou poeta

Querem voltar atrás no tempo, plantar o medo cá dentro, gritam "Deus, Pátria е Família"

E um marido que traga sustento ou mais um olho cinzento, diz quе foi contra a mobília"

2025-12-08

Ámen



Candidato Vieira

Há cartazes que mudam o país. E depois há este, que muda apenas o trânsito, porque toda a gente abranda para tentar perceber se o senhor de boné é realmente um piloto reformado, um filósofo clandestino ou alguém que simplesmente se perdeu a caminho de um casting para anúncios de seguros.

No outdoor, o Candidato Vieira – figura que aparenta ter passado por três cafés duplos e uma revelação metafísica – oferece ao mundo a sua máxima política:
“Uma pessoa sai de um partido e faz outro para dizer que está fora do sistema? É truque.” 

Ena pá!

Falta apenas fazer desaparecer o déficit e talvez um ou dois adversários — politicamente, claro.

E assim seguimos, confiantes de que, num país onde até as árvores parecem observar a cena com espanto, a campanha eleitoral nunca desilude: cada cartaz é uma obra de arte conceptual. E este aqui? Este merece um museu. Ou pelo menos uma rotunda.

2025-12-07

Epístola de Santo André Ventura aos Confusos

Primeira Carta aos Militantes Perplexos

André, servo autoproclamado do povo e apóstolo da indignação perpétua, aos amados militantes que vagueiam em confusão pelas terras lusitanas: graça vos seja dada, e clareza também, se possível.

Ouvi dizer que alguns de vós andam perplexos, sem saber se devemos estar contra o sistema ou fazer parte dele, se somos de direita ou apenas contra tudo o que aí está. A vós escrevo estas palavras de esclarecimento:

Do Mistério das Alianças

Não vos inquieteis quando me virdes recusar alianças numa segunda-feira e considerá-las numa quinta-feira. Pois está escrito: "Bem-aventurados os flexíveis, porque não se partem." A coerência é virtude dos fracos de espírito. Nós temos estratégia.

Da Doutrina do "Depende"

Perguntais: "Ó André, somos a favor ou contra o euro?" E eu vos respondo: depende do dia. Perguntais: "Devemos apoiar este governo?" E eu vos digo: depende de quem pergunta. Esta é a sabedoria do politicamente astuto.

Do Mandamento Supremo

Amai-vos uns aos outros, exceto quando discordarem de mim. Então sede firmes na vossa ira justa, pois serão traidores e infiltrados do sistema.

Da Parábola do Inimigo Variável

Hoje o inimigo está à esquerda, amanhã no centro, depois na direita tradicional. Não importa a direção, o que importa é que há sempre um inimigo. Sem inimigo, que faríamos nós nos comícios?

Admoestação Final

Não vos deixeis perturbar pela lógica ou pela memória do que disse ontem. O presente é o que conta. E o presente diz o que for necessário.

A vós, confusos mas leais, envio bênçãos e um powerpoint com novos slogans.

Ámen, ou whatever.
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André de Ventura, ditado aos escribas no ano da nossa confusão permanente.

2025-12-06

Do tempo

Reclamamos do frio, da chuva, do calor, da humidade — e tudo com a mesma convicção dramática que usamos para falar da crise existencial do pão que acabou antes do pequeno-almoço. No inverno, juramos que nascemos para viver embrulhados em mantas alpinas. Na primavera, amaldiçoamos o pólen e todos os seus antepassados. No verão, derretemos como gelados tristes e culpamos o sol por existir. No outono, claro, chove sempre “de propósito”. Somos um povo meteorologicamente perseguido, especialistas em queixar-nos do clima, excepto nos raros quinze minutos por ano em que está “mesmo bom”. Esses passam depressa demais para reclamar.

2025-12-04

Dezembro


É oficial: este ano o Natal chega embalado em sirenes e luzes intermitentes, porque até a fantasia precisa de uma maca para se aguentar de pé. A RTP, sempre atenta ao espírito nacional, decidiu transmitir o “Natal das Ambulâncias”, essa nova tradição que ninguém pediu, mas todos reconhecem como dolorosamente apropriada. Afinal, quando os hospitais estão mais ocupados do que as renas na véspera, só nos resta celebrar no asfalto, entre um estrondo de portas a fechar e a esperança de que, pelo menos, o Pai Natal ainda não está em triagem. Ah! o menino é bem capaz de nascer pelo caminho.